O corpo tem alguém como recheio

O aspecto relacional da alimentação e a vinculação intrínseca entre a imagem corporal e a constituição do sujeito.

* Por Vívian Hauck

O corpo tem alguém como recheio

Ao longo do mês de Junho, mês da conscientização dos Transtornos Alimentares, a Clínica Rezende se dedicou à produção de conteúdos acerca destes transtornos, visando proporcionar informações confiáveis e também sensibilizar sobre estes quadros clínicos e suas possibilidades de tratamento e suporte. Finalizando esta série de conteúdos, proponho neste texto uma breve reflexão acerca de dois aspectos que permeiam os Transtornos Alimentares: o aspecto relacional da alimentação e a vinculação intrínseca entre a imagem corporal e a constituição do sujeito.

O aspecto relacional da alimentação

“Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?”¹

Não é necessário ser um(a) grande pesquisador(a) para observar, cotidianamente, que o comportamento alimentar é permeado por implicações subjetivas. Um dia de grande alegria, um momento de tristeza, uma mudança brusca de vida, a ansiedade, a paixão, o término de um relacionamento: come-se mais, come-se menos, come-se muito mais, come-se muito menos. A alimentação tem vinculação estreita com a nossa relação com a vida, com o outro e com as vivências emocionais do dia-a-dia.  Não à toa, se nos lembrarmos de que é através da alimentação que vivenciamos nossas primeiras experiências de satisfação na vida, ainda quando bebês.

Neste sentido, a psicanalista Maria Helena Fernandes indica que “se pode constatar que o comportamento alimentar, originário e essencial desde o nascimento remete o sujeito à complexidade da sua relação com o próprio corpo, marca indelével dos efeitos da alteridade.”² Faz-se importante, então, para um maior entendimento dos fenômenos relacionados aos Transtornos Alimentares, a tentativa de compreender como a relação do sujeito com o seu próprio corpo e, consequentemente, com os outros que o cercam vai interferir no comportamento alimentar.

Imagem corporal e constituição do Eu

“O corpo tem alguém como recheio”³

Como pontuado acima, o comportamento alimentar remete o sujeito à sua relação com o próprio corpo. Assim, é comum que nos Transtornos Alimentares esteja presente um temor em ganhar peso, bem como uma distorção na percepção da imagem corporal do sujeito.  Por volta dos anos 30, Paul Schilder (psiquiatra, psicanalista e pesquisador) definiu “imagem corporal” como “a figura que se forma para o sujeito, no interior de seu aparelho psíquico, do tamanho e da forma de seu próprio corpo e os sentimentos suscitados a partir da픲. Maria Helena Fernandes refere também à ampliação da noção de imagem corporal conferida por Françoise Dolto, ao final dos anos 50, quando afirma que “a imagem inconsciente do corpo vai se moldando ao longo do tempo […] como uma espécie de elaboração de sensações e emoções precoces experimentadas na relação intersubjetiva com as figuras parentais, um verdadeiro substrato relacional que passa pelo corpo, lugar da comunicação precoce.”² Quando fala de “um verdadeiro substrato relacional que passa pelo corpo”, há que se lembrar como, para a Psicanálise, a constituição do Eu está intimamente vinculada ao corpo de um sujeito, no sentido de que o Eu só pode se constituir a partir de estímulos internos e externos que, necessariamente, passam pelo corpo.

A inscrição no corpo daquilo que (ainda) não encontra palavra

A partir do exposto, pode-se considerar que as dificuldades de um sujeito que vivencia um Transtorno Alimentar não necessariamente passam pela materialidade concreta do alimento, mas talvez pelas representações e dimensões psíquicas que o envolvem. Pensando nisso, fico com uma citação de Rubens Volich (2002), por Maria Helena Fernandes:

“Muitas vezes, diante do sofrimento e da perda, entre o vazio e a palavra, o corpo se vê convocado (…) Inscrevem-se ali os prazeres, os encontros felizes e gratificantes, mas também as dores, as perdas, as separações, mais difíceis de serem compartilhadas. Entre o real e o imaginário, inclina-se muitas vezes o corpo à exigência de conter o sofrimento indizível, de suportar a dor impossível de ser representada.”

Por fim, questiono:

Seria mesmo possível, como vendem a cultura e as redes sociais, constituir um corpo – e, consequentemente, uma psique – ideal, invulnerável, isento de dor, falhas e faltas?

 

Referências:

¹ Trecho da música “Comida”, da banda Titãs, da qual aproveito para destacar também o seguinte trecho: “A gente não quer só comer / A gente quer comer e quer fazer amor / A gente não quer só comer / A gente quer prazer pra aliviar a dor”.

² Trecho do livro “Transtornos Alimentares: anorexia e bulimia” (2006), de autoria da psicanalista Maria Helena Fernandes. Este, inclusive, foi o principal livro utilizado para a elaboração deste texto.

³ Trecho de “Momento nº8”, de Arnaldo Antunes: “O corpo existe e pode ser pego. / É suficientemente opaco para que se possa vê-lo. / Se ficar olhando anos você pode ver crescer o cabelo. / O corpo existe porque foi feito. / Por isso tem um buraco no meio. / O corpo existe, dado que exala cheiro. / E em cada extremidade existe um dedo. / O corpo se cortado espirra um líquido vermelho. / O corpo tem alguém como recheio.”

Relato de Anorexia Nervosa

Paciente J, sexo feminino, 40 anos.

Relato de Anorexia Nervosa da paciente J, sexo feminino, 40 anos.

Hoje com 40, desde os 14 convivo com um transtorno alimentar. Nos seis últimos anos, o meu quadro, que já foi bastante agudo, se estabilizou. Trata-se de um exercício diário de amor próprio e do entendimento de que aquilo que me norteou por toda adolescência e parte da juventude estava equivocado.

Não é fácil, mas tampouco é impossível. Foram idas e vindas, muitas pessoas envolvidas, o cotidiano da minha família, que sempre esteve ao meu lado, afetado. Estar no limite crítico não bastou para que eu tomasse consciência da gravidade do quadro. Isso só aconteceu após uma junção de eventos, dentre os quais uma internação por três meses numa enfermaria de comportamento alimentar em um hospital psiquiátrico. Este fato pontual foi meu primeiro passo rumo à redenção. Soma-se à ele a sorte de ter encontrado pela primeira vez, após diversos tratamentos, uma equipe competente para me resgatar.

A presença incondicional daqueles que me amam também compõe esta equação. Acredito que a cada dia dou um novo passo e a evolução se faz presente em pequenos momentos que comprovam que existe uma vida além das obsessões, regras e tabus impostos pela anorexia. Se eu pudesse voltar no tempo, certamente diria àquela garota de 14 anos para buscar um propósito que a libertasse deste fardo.

Existe por aí um mundo cheio de cores e possibilidades e reduzi-lo a um ideal estético é penoso demais. A batalha ainda é diária, mas me sinto fortalecida, capaz de lidar com assédio de pensamentos doentes que invariavelmente virão. Sigo a minha jornada e hoje, mais do que nunca, acredito que o pior ficou para trás.