Relato de um Transtorno de Compulsão Alimentar

Primeiro relato de uma paciente com TCAP para a campanha do Mês de Conscientização dos Transtornos Alimentares da Clínica Rezende.

Relato de um Transtorno de Compulsão Alimentar, Paciente F, do sexo feminino, 44 anos.

Eu já tinha o TCAP (Transtorno de Compulsão Alimentar Periódico) há muitos anos, com episódios diários e bem descontrolados. Comia todos os dias, por um período de aproximadamente 2 horas, sempre à noite, 4 pães de sal recheados de presunto e muçarela, pacotes de biscoito recheado e 3 ou 4 barras de chocolate de 200g. Diariamente, sem parar, só parava quando já não conseguia mais, de forma totalmente descontrolada. Mas não sabia que era uma patologia, que aquilo era um distúrbio… Para mim era uma compensação da rotina extremamente intensa de desgaste energético pela minha antiga atuação profissional (eu era professora de educação física, com maior atuação em atividades coletivas nas academias de ginástica). Me alimentava pouco durante o dia para o dispêndio energético que tinha. Só comecei a me dar conta de que havia algo realmente errado quando parei de dar aulas por mudar de profissão e tudo começou a degringolar.

Comia cada vez mais, descontroladamente, e sempre mantendo aquele ritual. A vergonha de mim mesma, tanto por comer daquela forma e pelas mudanças no meu corpo, foi tomando proporções gigantes, sem tamanho mesmo, e não queria mais me expor, ver ninguém, que ninguém me visse, uma tristeza enorme me consumia, e tudo foi só crescendo. Não saía mais, não parava de chorar, perdi contato até com a família. Não conseguia me controlar, em nenhum momento, e essa sensação de impotência diante de mim mesma, da minha mente, me fazia acreditar que nada fazia mais sentido, que não havia saída, que minha vida seria aquela dali para a frente. E diante disso, não havia mais razão para viver, já que tudo que eu amava fazer e ser eu não podia mais (a gente acha mesmo que não pode mais…).  Cheguei a esse ponto para resolver procurar ajuda. E isso só aconteceu mesmo por desespero da minha mãe, que não aceitava ver a filha se definhando.

Primeiro procurei uma psicóloga. Fui a 4. Por orientação, desde a primeira psicóloga, procurei um psiquiatra, também foram 4. E a cada tentativa, os anos se passavam e eu ia desanimando cada vez mais. Me sentia cada vez mais impotente, triste, e a depressão veio muito forte, muito mesmo.

Mas foi essencial insistir. Porque esses profissionais conseguem mostrar para a gente outras direções. Ficamos tão doentes, vivendo tanto só o nosso problema, que só conseguimos enxergar isso! Só vemos o problema! O (a) psicólogo (a) abre seus horizontes e você começa a conseguir enxergar alguma possibilidade… O remédio do psiquiatra lhe auxilia a sair do buraco, é uma bengala, infelizmente necessária. Sozinhos não temos força para enfrentar.

Tentei a nutricionista no começo, mas não foi legal… a gente não tem força para mudanças, abrir mão daquilo que nos dá tanto prazer, que a gente sente que não consegue viver sem… Só depois de estar mais forte, consciente, é que dá para começar uma reeducação alimentar. Antes disso me gerou frustração, agonia por não conseguir, e sensação de incapacidade.

É tão difícil explicar de forma que as pessoas entendam essa relação com a comida… É tão doentia essa relação! Ao mesmo tempo em que aquela comida, aquele horário, aquele tempo, aquele momento, é onde tenho o maior prazer na minha vida, que não troco por nada, que sou capaz de brigar, que passo por cima de qualquer coisa ou pessoa, é também meu maior pesadelo, minha maior tristeza, onde meu sentimento de culpa não cabe dentro de mim, que faz com que eu acredite que não sirvo mais para essa vida… Muito doentio mesmo. E para cuidar disso, tratar, não é de uma hora para outra! Não mesmo! Digo, inclusive, que é para o resto da vida!

Hoje, depois de anos em tratamento, de muito ouvir e aprender, sei do tamanho do meu “oponente”… Respeito demais, e não passo um dia sem ter medo de recair. É uma luta para o resto da vida. É como o tratamento do alcoólatra, do dependente químico. Um dia após o outro mesmo. E se hoje não deu, depois do tratamento, sei que o amanhã eu posso fazer diferente! E assim vamos seguindo!

A sensação de cair é horrível. Horrível. Mas a gente conseguir levantar, dar pequenos passos, fazer nossos enfrentamentos, ter pequenas vitórias (as mais simples e comuns aos olhos das outras pessoas), olha, isso não tem preço!

Me encontro ainda em evolução e em consciente eterno enfrentamento, porque sei do tamanho e poder desse distúrbio… Não dá para brincar. Controlo muito mais hoje! De segunda a sexta não como NADA de alimentos recreativos, nada! Me provo realmente… Certo? Não… longe de ser meu ideal! O que mais queria (quero) é levar de boa, de forma equilibrada, essa rotina alimentar, assim como aprendi com as meninas do Alimente. Alimentação consciente! Mas meu pânico em voltar a fazer o que fazia antes ao colocar um pedaço de chocolate na boca… não me permite ainda tentar. Aos domingos a compulsão impera. Descontroladamente. E não é por conta da restrição da semana. Eu tinha “domingos” diariamente. Então para mim, para minha realidade, um domingo por semana por enquanto é mais uma vitória.

Para aquelas pessoas que também passam por situação parecida, digo que procure ajuda o quanto antes… quanto antes melhor! Tente não se preocupar com o corpo, em perder peso no começo… porque isso é consequência. O mais importante é tentar diminuir, o quanto puder, os episódios compulsivos… passar de sete dias por semana para seis por semana é ótimo! De seis para cinco, lindo! E assim vai indo! Tenha fé, faça alguma atividade física. É o tripé. Ajuda profissional, ter uma religião (acreditar em algo) e liberação de endorfina, serotonina. Vibre, muito, com pequenas vitórias! Não se culpe, por NADA! Não diminua ou deixe que diminuam o seu problema. Cada um tem um ou vários, esse é o seu, e você não está dando conta de resolver sozinha! E viver, estar aqui, é uma dádiva! Somos abençoados! Temos tanto a agradecer… honre essa dádiva! Lute, lute muito, porque vale a pena demais…