Ao contrário do que poderíamos esperar, o sono é um processo fisiológico ativo e dinâmico, mediado por um complexo sistema regulatório. Talvez seja uma das primeiras atividades do cérebro em desenvolvimento. Além do seu já conhecido relevante papel para uma vida saudável e sensação de bem-estar geral, são cada vez mais robustas as evidências científicas relativas à importância do sono em uma variedade de funções cerebrais como aprendizagem, neuroplasticidade e consolidação da memória. De encontro a essas evidências, estudos apontam que alterações do sono nos primeiros anos de vida podem trazer impactos negativos no desenvolvimento cognitivo, socioemocional e físico das crianças, bem como na dinâmica familiar.
Sabemos que os padrões de sono mudam ao longo de toda nossa vida e, provavelmente, as mudanças mais notórias ocorram nos nossos dois primeiros anos e na transição da infância para a adolescência. Essas mudanças são atribuídas ao próprio amadurecimento cerebral – acompanhando o desenvolvimento neuropsicomotor – e, às alterações na rotina diária e nas demandas e responsabilidades sociais.
O sono de um recém-nascido é completamente diferente do sono de uma criança, adolescente ou adulto. Uma de suas principais características é a ausência de um ciclo vigília-sono estável e alinhado ao ciclo dia-noite de 24 horas. Enquanto o adulto apresenta apenas um ciclo vigília-sono em 24 horas – dormindo por cerca de 6 a 8 horas/noite -, o recém-nascido passa a maior parte do dia e da noite dormindo, num total de 17 a 19 horas distribuídas em 8 a 10 períodos de sono, independente do ciclo dia-noite externo. A sincronia entre esses dois ciclos começa a ocorrer a partir do 2º ou 3º mês de vida, quando a maior parte do sono tende a se concentrar no período noturno, com uma redução gradual dos cochilos diurnos. Essa sincronização é mais notável por volta dos 6 meses de vida. No entanto, um ciclo vigília-sono regular se concretizará apenas por volta dos 2 anos de idade. Em geral, a partir dos 18 meses não mais ocorre o cochilo matutino, persistindo apenas o vespertino até por volta dos 3 anos. Apenas 15% das crianças mantém um cochilo diurno aos 5 anos de idade.
Como mencionado acima, as mudanças do padrão de sono são em grande parte decorrentes do processo natural de desenvolvimento de uma criança. A diminuição da fragmentação do sono e o aumento de sua consolidação, permitindo mais períodos ininterruptos de sono, estão relacionadas ao aumento da capacidade do bebê em adquirir as calorias necessárias durante o dia, com consequente redução da necessidade das mamadas noturnas; ao aumento da liberação de hormônios como a melatonina e a hipocretina, importantes na regulação do sono; e ao amadurecimento de regiões cerebrais responsáveis pela manutenção da vigília e do sono.
É frequente o questionamento sobre o tempo ideal de sono para determinada faixa etária. Esse tempo seria aquele necessário para que o indivíduo se sinta bem descansado, permitindo seu funcionamento ótimo durante o dia. A partir de estudos populacionais é possível se chegar a uma média de horas de sono para cada período da infância, conforme tabela abaixo baseada nas recomendações de 2015 da Academia Americana de Medicina do Sono. No entanto, sempre deve ser levado em consideração os contextos sociocultural e familiar, bem como as diferentes necessidades individuais. Uma criança que desperta espontaneamente pela manhã e que se apresenta disposta e com bom-humor ao longo do dia, provavelmente tem uma quantidade de sono suficiente.
Faixa etária | Média de horas de sono recomendada em 24 horas |
0 a 2 meses | 14 a 17 horas |
3 a 12 meses | 12 a 15 horas |
1 a 3 anos | 11 a 14 horas |
3 a 5 anos | 10 a 13 horas |
Observamos na tabela acima que há uma redução gradativa da quantidade de horas de sono necessária ao longo dos primeiros anos de vida, concordando com o que foi comentado nos parágrafos anteriores.
Além da diferença na quantidade de sono, a arquitetura do sono (ou seja, a distribuição dos seus estágios durante a noite) também é distinta nos primeiros anos de vida. Os recém-nascidos apresentam de 50 a 80% do tempo de sono preenchido pelo chamado sono REM (rapid eye movements, em inglês, ou movimento rápido dos olhos). Essa porcentagem vai gradualmente reduzindo ao longo dos meses e, atinge um padrão semelhante ao do adulto (25 a 30%) por volta dos 12 meses de vida, quando o sono NREM (non rapid eye movements) se torna o preponderante. O sono REM é importante para o desenvolvimento cerebral e para o aprendizado, ao aumentar e fortalecer as redes neurais. Acredita-se, portanto, que o seu predomínio nos lactentes seja necessário para a consolidação da grande quantidade de informações recebidas e experiências vividas nos primeiros anos de vida.
Hábitos saudáveis de sono devem ser estimulados desde os primeiros meses de vida através de práticas diárias realizadas pelos cuidadores para promover o sono e garantir sua qualidade. Esses hábitos envolvem a organização de uma rotina preparatória para o adormecer, tanto através de atividades que estarão associadas a esse momento quanto através de mudanças no ambiente que possam sinalizar a aproximação desse horário.
De uma forma geral, o estabelecimento de rotinas é benéfico na primeira infância ao permitir que as crianças tenham alguma previsão sobre o que irá acontecer no seu dia e ao auxiliá-las na transição entre as diversas atividades. Estudos apontam que essa prática está associada a desfechos positivos para a criança, como o maior desenvolvimento da linguagem, o melhor rendimento acadêmico e o melhor funcionamento socioemocional e comportamental (melhor humor, maior capacidade de autorregulação e moderação da impulsividade). No ambiente domiciliar, contribui para o funcionamento da família e para o bem-estar dos seus integrantes, podendo reduzir o conflito entre crianças e cuidadores e proporcionar maior nível de satisfação e menor nível de estresse maternos. Especificamente com relação ao sono, ter uma rotina consistente tem seus benefícios comprovados na qualidade de sono na infância, diminuindo o tempo para o seu início, reduzindo o número de despertares noturnos e aumentando o tempo total de sono. Essa rotina deve estar de acordo com a idade da criança e levar em consideração o contexto sociocultural em que ela está inserida.
A partir do 6º mês de vida, os cuidadores já podem iniciar a aplicação de rotinas relacionadas ao dormir. Elas devem ser rápidas, durando entre 30 e 45 minutos, e envolver poucas atividades relaxantes realizadas diariamente antes de ‘ir para cama’. Por exemplo, dar um banho morno, fazer uma massagem, cantar músicas de ninar e ler pequenas histórias são atividades que podem ser incluídas nesse momento, sendo realizadas com afeto e conexão emocional. Garantir um ambiente confortável, ou seja, que facilite o processo de adormecer, também faz parte dessa rotina, buscando-se um local calmo, silencioso, escuro, com temperatura ajustada e livre de eletrônicos. Essencialmente, essas atitudes devem ser realizadas em horários regulares, auxiliando na sincronização do ciclo vigília-sono com o ciclo claro-escuro e garantindo horários consistentes de dormir e de acordar.
Uma das habilidades relacionadas ao sono mais relevantes a ser adquirida nos primeiros anos de vida é a capacidade de adormecer com autonomia, isto é, independente da presença dos cuidadores. Idealmente, a criança deve ir ou ser colocada na cama ainda sonolenta e, adormecer sem a interferência dos cuidadores. Nos primeiros meses de vida é natural que seja necessário auxiliar os bebês nesse processo, porém os cuidadores devem sempre estimular o desenvolvimento dessa capacidade, criando oportunidades para o adormecer autônomo. Quando é conquistada, ela auxilia que o bebê durma novamente de forma rápida e independente após os breves despertares noturnos fisiológicos. Do contrário, comumente o bebê terá dificuldade em retomar o sono, o que impactará na qualidade e na quantidade de sono dele mesmo e também de seus cuidadores.
Como recomendações finais, deve-se evitar exposição a luzes de eletrônicos após o escurecer; evitar o uso de substâncias que possam interferir negativamente no sono, como chocolate e refrigerantes à base de cola, os quais contêm cafeína; evitar brincar e passar longos períodos na cama; e estimular a exposição a luz externa no período da manhã.
Conhecer a fisiologia do sono, entender as necessidades individuais e saber interpretar os sinais que as crianças nos dão facilitam o desenvolvimento de hábitos saudáveis e adaptados para cada contexto familiar. Uma boa qualidade de sono é fundamental para o pleno desenvolvimento neuropsicomotor e para o bem-estar familiar e sua busca deve ser iniciada ainda nos primeiros meses de vida, garantindo hábitos saudáveis que tenderão a perdurar ao longo dos anos.
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