“Há quem diga que “esse papo de Freud está ultrapassado. Com tantas mudanças em um século, Freud já era!” Ou ainda: “A psicanálise já era!””
(Maurano, 2010, p.9)
A criação da psicanálise tem sua origem nas investigações de Freud acerca da histeria no fim do século XIX. Os quadros histéricos da época traziam consigo o enigma do que haveria para além dos quadros orgânicos já conhecidos pela medicina, desafiando os conhecimentos científicos com sintomas que não correspondiam às alterações nervosas esperadas. Eram pacientes, por exemplo, que desenvolviam uma paralisia em membros inferiores sem correspondência de alteração específica no sistema nervoso.
Após testemunhar múltiplas tentativas por parte dos médicos da época de intervenções sem sucesso, Freud acompanha e investe no trabalho com o hipnotismo juntamente com Josef Breuer, médico vienense. O trabalho consistia em induzir a paciente enferma, sob hipnose, a recordar seus traumas esquecidos – aos quais não tinham acesso em estado de consciência – e reagir de modo a exteriorizar seu afeto, procedimento denominado de “método catártico”. Como efeito desse procedimento ocorria o desaparecimento do sintoma, que passa a ser compreendido, então, como uma conversão de um afeto que não pôde ser exteriorizado em um quadro somático sem correspondência orgânica.
A hipnose, contudo, foi abandonada por Freud por identificar que os resultados deste método, apesar de perceptíveis pouco tempo após a intervenção, eram pouco duradouros e fortemente dependentes da relação pessoal do paciente com o médico. Freud segue então para a criação da psicanálise, que herda alguns aspectos deste tempo de trabalho com o hipnotismo, como:
“Ele [o inconsciente] se tornou pela primeira vez concreto, palpável e objeto de experimento.” – Freud, 1924, p.224-225
Com o abandono da hipnose, Freud deparou-se com a necessidade de substituí-la por outra técnica que pudesse também fazer emergir algo do inconsciente. Instituiu, assim, a técnica da associação livre, a “regra psicanalítica fundamental”, que consistia em instruir aos pacientes que se entregassem ao curso de seus pensamentos espontâneos e involuntários e os transmitisse ao psicanalista ainda que fossem desagradáveis ou que lhes parecessem absurdos. Sua expectativa era de que, suprimida a intenção do pensamento consciente, a fala do paciente seria determinada pelo material inconsciente.
Contudo, esbarrou com uma resistência constante, que não aparecia durante a hipnose e que dificultava a comunicação do conteúdo de etiologia patológica. Só assim pôde identificar que os conteúdos patológicos não eram esquecidos de forma aleatória. Seu esquecimento seria o resultado de outra força psíquica que objetivava o afastamento dessas lembranças do consciente, ou seja, a sua repressão. O sintoma, portanto, seria uma expressão deste conteúdo reprimido, um substituto para satisfações proibidas. Satisfações essas que já não poderiam ser satisfeitas desde a infância, período da vida que deteve a atenção de Freud em seu estudo sobre as neuroses.
Não sendo então possível acessar sem barreiras o inconsciente, como escutá-lo? Freud passa a enfatizar dois elementos cotidianos que dariam notícia do inconsciente e seriam passíveis de serem escutados a partir da fala dos pacientes. O primeiro, os atos falhos, que antes eram tidos como elementos desimportantes, vinculados apenas ao cansaço ou à desatenção: pequenos esquecimentos, troca de palavras na fala ou de letras na escrita, mudança involuntária de um objeto de local etc.. O segundo, os sonhos – que tiveram seu mecanismo estudado extensamente por Freud por identificar a similaridade entre a sua formação e o mecanismo de formação dos sintomas neuróticos-, acessíveis parcialmente pelo relato dos pacientes nas sessões.
Essas descobertas vieram dar notícia não só sobre os fenômenos patológicos, mas também sobre o funcionamento humano dito normal. A partir disso, Freud assume que o jogo de forças entre desejo e repressão, a possibilidade ou não de acesso de determinados pensamentos à consciência, estaria presente no funcionamento de todo ser humano, seríamos todos sujeitos ao funcionamento do inconsciente. A Psicanálise faz sua passagem, assim, de um estudo exclusivo da patologia para o estudo do funcionamento do psiquismo humano com ênfase no papel fundamental do inconsciente.
A partir do que pudemos ver com a história da criação da Psicanálise, constatamos que ela se origina lá nos primeiros trabalhos em busca de desvendar os enigmas dos sintomas da histeria. É com a compreensão de que esses sintomas teriam “algo a mais” a dizer e de que viriam para noticiar um mal-estar psíquico, uma insatisfação, que a psicanálise inicia sua busca para a construção de um arcabouço teórico-clínico que pudesse dar conta da formação desses sintomas. Quanto ao mal-estar e à insatisfação, Freud os encara não como algo necessariamente ruim a ser sanado/resolvido, mas como algo inerente e crucial para a constituição de cada sujeito inserido num contexto social e numa cultura – especialmente nas sociedades ocidentais desde o fim do século XVIII. É preciso abdicar parcialmente dos próprios desejos para que se possa conviver em sociedade e se inserir em relações afetivas. O que significa dizer que os sintomas, em menor ou maior grau, se farão presentes na vida de todos nós. Quando se fala de estrutura neurótica, não há outra forma.
É por isso mesmo, por ser a insatisfação e a impossibilidade de realização direta dos desejos constituintes de cada sujeito, que podemos dizer que os sintomas de outrora seguem presentes na contemporaneidade, ainda que com apresentações diversificadas e com novos enigmas. No nosso tempo, são inclusive inúmeras as tentativas de resolver e minar essa insatisfação e essa falta, como, por exemplo, pela via do consumo excessivo de medicações, substâncias psicoativas, tecnologias, informação, alimentos etc. ou por profissionais “milagrosos” que prometem ensinar “x passos para que você seja, finalmente, 100% feliz”. Não é surpresa dizer que essas promessas fáceis não funcionam e que, inclusive, muitas vezes só acabam gerando maior sofrimento, angústia e afastamento dos próprios desejos.
Na contramão dessas propostas, encontra-se a Psicanálise, que:
desde seus suados primórdios no rigor da ética cunhada por Freud, [sua proposta] foi a de ser uma estratégia para tratar desse vazio, que na maior parte do tempo traduzimos por falta de alguma coisa ou falta de alguém. Sua intenção não foi a de constituir-se como promessa de saná-lo. Aqui, o tratamento é a cura, já que não podemos nos curar da ferida de sermos humanos. Ou seja, substituindo a idéia de cura como o que estaria na finalização de um tratamento, por meio da extirpação de um mal, entra em cena o procedimento investigativo do tratamento psicanalítico, que traz como uma de suas conseqüências o efeito terapêutico. O vazio é impossível de ser extirpado, mas cabe-nos encontrar meios menos nefastos de abordá-lo. Como li num folhetim: “Não se pode mudar a direção do vento, mas pode-se alterar a posição das velas.” (Maurano, 2010, p.14-15).
A psicanálise não recua diante do mal-estar inerente à vida humana. Não recuou há mais de cem anos e não recua hoje, diante dos sintomas de nossa época. Em tempos de escassez de palavras, relações frágeis e excesso de estímulos, ela dá lugar a cada sujeito, a seu mal-estar, sintomas e dificuldades sem promessas de soluções instantâneas, mas com a escuta atenta que cada um que adentra o consultório merece. Escuta que se desdobra em produções clínico-teóricas dos mais diferentes quadros clínicos para pensar hipóteses acerca das formações de sintoma e das direções de tratamento. Não à toa, a formação de um psicanalista é prevista para a vida toda. A psicanálise era e ainda é: enquanto houver trabalho clínico, haverá questionamento, estudo, atualizações e reatualizações. Diante do mal-estar contemporâneo não haverá fuga ou resoluções rápidas. Haverá, isso sim, escuta e muito trabalho.
FREUD, S. Resumo da Psicanálise (1924). In: Obras Completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) [tradução Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
MAURANO, D. Pra que serve a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010 (3ª ed.).