* Por Ana Carolina Meneghin
O impacto do uso precoce e excessivo de telas no desenvolvimento infantil
Nos últimos anos, estamos vivendo uma explosão de novas tecnologias de comunicação e informação, que se tornaram parte integral e, muitas vezes, indispensável da vida cotidiana. A exposição a essas tecnologias tem ocorrido em idades cada vez mais precoces e com mais intensidade, o que se acentuou a partir da pandemia da COVID-19, com o home office, as aulas remotas e o, já frequente, uso como entretenimento. Apesar dos benefícios trazidos por essas novas tecnologias, existem claros impactos negativos no seu consumo excessivo, principalmente no desenvolvimento infantil.
Os primeiros dois anos de vida de uma criança são de extremo amadurecimento em diversos domínios: visual, motor, de coordenação, da cognição, da linguagem e da socialização. A aquisição de novas habilidades é diária e, muitas vezes, impressionante. O cérebro encontra-se em pleno desenvolvimento, respondendo a estímulos externos e internos, estabelecendo novas conexões sinápticas, amadurecendo outras e modelando sua arquitetura de forma a permitir a obtenção e a manutenção dessas habilidades. Nesse momento, é fundamental a exposição a experiências diversas, a ampliação dos estímulos externos e, principalmente, a construção de vínculos afetivos entre criança-cuidador, através do cuidar, do olhar, do compartilhar e do brincar.
No entanto, é cada vez mais frequente que crianças com menos de um ano de idade sejam expostas ativa e passivamente aos conteúdos digitais presentes nos diversos gadgets eletrônicos disponíveis (smartphones, tablets, smartvs, notebooks e videogames). Cuidadores reportam como possíveis fatores associados a apresentação de telas nessa faixa etária a ausência de alternativas de entretenimento com preço acessível, a exaustão parental, a necessidade de tempo para realizar tarefas domésticas e pessoais e a crença de um potencial educativo de determinados programas digitais. Com relação a essa última justificativa, estudos já demostraram que por mais que o conteúdo seja de alta qualidade e apropriado para a idade, a capacidade de aprendizado de uma criança é muito maior quando o conteúdo é transmitido cara-a-cara, baseado na interação e no compartilhamento, estimulando o desenvolvimento da linguagem, da capacidade de socialização e de percepção de emoções. Inclusive pesquisas apontam que quando os cuidadores assistem aos programas junto com as crianças e interagem com elas dentro do contexto veiculado, a retenção das informações potencialmente educativas neles contidas é maior, sugerindo que é importante para a criança a transposição daquele conhecimento para o mundo real e então, sua aplicação na vida cotidiana. Ou seja, o compartilhamento de experiências com outras pessoas faz parte do processo de aprendizado natural.
Alguns estudos já apontaram para a maior frequência de atrasos no desenvolvimento cognitivo, psicológico e de linguagem em crianças que consomem telas de forma excessiva. Esses atrasos se tornam ainda mais evidentes quando o conteúdo consumido não é de alta qualidade, interferindo principalmente no desenvolvimento das funções executivas como o controle de impulsos, a autorregulação e a flexibilidade mental. Outra habilidade que também tem seu desenvolvimento comprometido é a capacidade de atenção, uma vez que, assim como os adultos, as crianças são submetidas a novos estímulos constantemente durante o uso de telas e, portanto, a atenção é frequentemente fragmentada, podendo até mesmo comprometer a compreensão daquele conteúdo. Um estudo publicado na revista JAMA Pediatrics em 2019 encontrou uma pior performance em testes de screening comportamentais, cognitivos e sociais em crianças que passaram mais tempo por semana em uso de telas. Outras pesquisas com crianças entre 6 e 18 meses de vida apontaram um maior risco de reatividade emocional, comportamentos disfuncionais, dificuldades de autorregulação e comportamentos agressivos diante de um uso em demasia de telas.
Uma consequência mais óbvia desse hábito é o aumento do tempo de inatividade física, trazendo como maior risco de desenvolvimento de sobrepeso e obesidade. Ao mesmo tempo, uma revisão publicada no British Medical Journal em 2019, apontou para uma associação entre o maior consumo de alimentos ultraprocessados e a maior quantidade diária de calorias ingeridas ao uso excessivo de telas. Nesse ponto, é interessante salientar o impacto das frequentes propagandas veiculadas nos programas infantis relacionadas a esses alimentos, considerando-se a maior vulnerabilidade dessa faixa etária aos apelos do marketing. Além do impacto na saúde global – risco de elevação dos níveis da pressão arterial e dos níveis de colesterol e glicose sanguíneos -, a redução da prática de atividades físicas traz impactos negativos no desenvolvimento das habilidades de coordenação motora e de força e, propicia o surgimento de queixas como cervicalgia, lombalgia e cefaleia. Essa mesma revisão encontrou melhores desfechos na cognição e na saúde mental de adolescentes que praticaram pelo menos uma hora de atividade física por dia, tiveram de 8 a 10 horas de sono por dia e utilizaram telas como entretenimento por menos de duas horas diárias.
Cabe ainda pontuar a interferência na qualidade e na quantidade de sono, o que repercute de forma considerável na qualidade de vida e no desempenho acadêmico das crianças. Estudos apontam para a redução do número de horas de sono relacionada à presença de telas no quarto e ao excesso do seu consumo, principalmente no período noturno. Um dos mecanismos implicados nessa redução é a supressão da melatonina endógena pela luz azul emitida pelos dispositivos eletrônicos. Ademais, o consumo de conteúdos violentos ou inapropriados pode favorecer a ocorrência de pesadelos. Por conseguinte, uma má qualidade de sono ocasiona sonolência diurna, impacta na capacidade de memorização e concentração, podendo reduzir o rendimento nas atividades diurnas.
Diante das evidências dos possíveis prejuízos relacionados ao consumo excessivo de telas e, considerando que o consumo de conteúdos digitais é parte do cotidiano atual de nossa sociedade, é importante que crianças e adolescentes recebam uma educação quanto ao seu uso saudável e responsável tanto no ambiente domiciliar quanto no escolar. Abaixo seguem algumas recomendações de acordo com publicações da Sociedade Brasileira de Pediatria e da American Academy of Pediatrics:
- salientar a importância da supervisão, regulação e engajamento parental durante as atividades exercidas por crianças e adolescentes online.
- evitar a exposição a telas antes dos dois anos de idade. Caso seja interesse dos cuidadores introduzir crianças entre 18-24 meses aos conteúdos digitais, orientar sobre a necessidade de escolher programas de alta qualidade e de compartilhar este momento com elas para que o conteúdo seja melhor compreendido e, posteriormente, aplicado no seu cotidiano.
- limitar o tempo de tela a uma hora por dia para crianças entre 2 e 5 anos, mantendo a orientação da supervisão e da seleção dos programas.
- estabelecer limites consistentes quanto ao tempo e ao tipo de mídia digital para crianças acima de 6 anos, garantindo que esse uso não interfira na qualidade de sono, na realização das atividades escolares e na prática de atividades físicas.
- estabelecer momentos de convivência ‘livre de telas’, como durante as refeições e trajetos de carro.
- estabelecer cômodos onde seu uso de telas deve ser evitado, como nos quartos.
- evitar o uso de telas cerca de duas horas antes de se deitar.
- oferecer alternativas de atividades de lazer, procurando estimular aquelas em conjunto e ao ar livre.
- dialogar e orientar sempre quanto a necessidade do respeito e da ética dentro das mídias, dos cuidados com os conteúdos postados e do questionamento da veracidade das informações compartilhadas.
Referências
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